3. Dança

A tarefa dos bailarinos é encontrar maneiras de fazer a interioridade do corpo, a confusão entre órgãos, sentimentos e afetos, ser plena projeção no espaço, plena exterioridade desde dentro.

José Gil

Aos cinco anos comecei a aprender a falar com o corpo. Primeiro faz-se sem saber muito bem o que se está a fazer, também se faz a brincar, imita-se (imita-se muito), observa-se o próprio corpo no espelho e os corpos dos outros, associa-se o movimento a um ritmo, ideia ou emoção e, sobretudo, confia-se; confia-se que talvez um dia se seja capaz. Mais importante ainda, às vezes, do nada, o corpo mexe-se por vontade própria e, se não for censurado, fala e quer ser escutado. É mais tarde que se decide em consciência o que partilhar com os outros, com base numa ética e numa estética que se traduzem numa visão.

Há uns dias, ouvi uma entrevista a Kae Tempest no podcast What I Love onde, entre outras coisas, abordam temas relacionados com a performance. Falam da pressão que vem associada à oportunidade, assim como o sentimento de serviço. Referem a importância de abrir e criar espaço para encontrar em cada apresentação novos significados. Quanto ao intérprete, entendem que não deve tomar a responsabilidade pela vivência do público, o seu papel consiste, sobretudo, em estar verdadeiramente presente na experiência. Para Kae, originalidade tem que ver com intenção e integridade, e actuar não é expor, é oferecer. Questionam ainda se um poema que nunca foi lido por ninguém é, sequer, um poema. Recomendam não recuperar algo que não funcionou no passado, por medo do vazio que, por vezes, antecede o novo. A importância de continuar. Continuar para começar, digo eu.

Os objectos têm sido uma constante no desenvolver da minha linguagem, tanto nos meus próprios trabalhos como em colaborações. Desde objectos quotidianos e funcionais, como cantis e partes de um piano, a objectos de malabarismo, como bolas e diábolos. Relaciono-me com os objectos desde uma perspectiva da dança e interessa-me o seu potencial imagético. Acrescentam camadas e, talvez pelo concreto, permitem-nos chegar a lugares onde, de outra forma, não seria possível. Na minha experiência, este potencial manifesta-se na relação com o corpo. Não sendo a manipulação de objectos o ponto de partida para este projecto, levanto algumas questões. O que há fora de mim quando estes não estão presentes? Com que faz fronteira o corpo? Com que estabelece relação? Que limitações/premissas encontro que sirvam de motor de pesquisa do movimento? É verdadeiramente possível o solo? Proponho-me chegar a conclusões sobre a dança através da própria dança. Nesse momento não estou sozinha. Às vezes, bastam a música e a intenção certas.

Existe no ser humano uma intenção de aproximação. Talvez esse seja o principal propósito. A vontade de sair do indivíduo passa, paradoxalmente, por mergulhar dentro, arrancar a matéria a relacionar com a matéria do mundo, para depois fazer o possível com ambas. Sem nunca me ter especializado em nada, aprendi a viver sem ser uma só coisa; no fim, tudo são extensões de uma mesma vontade. O meu percurso tem sido definido, em grande parte, por pessoas que me inspiram e que acabam por moldar caminhos. Apesar de todas as dificuldades, há uma grande alegria neste modo frágil de viver.

Enquanto lia o manual de João Tordo, e sempre fazendo um paralelismo entre dança e literatura, cheguei a uma definição do que faço no contexto deste projecto: dança entre a literatura e o audiovisual ou dança-relato.

Ao passo que o audiovisual impõe a experiência subjectiva ao mostrar tudo sobre essa experiência, a literatura meramente a sugere.

A literatura, por sua vez, é um voo a partir da página onde estão impressas as palavras. Não carece de alta definição, som, cores, montagem, actores, guião ou realizador. A literatura é ela própria, sem espaço definido; é feita de linguagem, imaginação e tempo, do corpo e da alma do escritor.