1. Inícios

Existiram dois momentos cruciais no início deste projecto: o momento em que o comecei a idealizar e o momento em que decidi partilhar o processo de forma digital.

O primeiro início aconteceu nos primeiros dias de Julho de 2020, quando acabava um processo de criação como intérprete. O encerrar desse processo devolveu-me um novo espaço mental; as minhas antenas voltaram a desviar a atenção para o que se passava dentro e o que me chegava de fora, desde uma perspectiva de direcção, diferente da perspectiva de intérprete. Quem sou eu agora? Como vejo o mundo, que inquietudes me atravessam e o que quero partilhar? A estas questões acrescentei todas as limitações, dúvidas, inseguranças e incertezas relativas à situação actual de pandemia que todos estávamos já a viver.

Num destes dias de Julho, a caminho dos ensaios, ouvi na Antena 2 Os Fantasmas de Luísa Todi, produção de estreia da Companhia de Ópera de Setúbal com direcção artística de Jorge Salgueiro. As diferentes vozes entravam, evocavam nomes e retiravam-se. À base da repetição e da acumulação de camadas, voz e instrumental, criavam uma densidade crescente na qual ia mergulhando sem conseguir nem querer emergir. Como se, naquele momento, aquelas memórias evocadas na forma de nomes também fizessem parte de mim. Esta experiência despertou a minha imaginação.

Num outro destes dias dos princípios ouvi, também na rádio, uma crónica de Em Todos os Sentidos de Lídia Jorge. Chamou-me a atenção algo da sua escrita que tem que ver com o humano. A sinopse do livro que compila as crónicas é bastante elucidativa.

Em Todos os Sentidos, conjunto de quarenta e uma crónicas que Lídia Jorge leu, ao longo de um ano, aos microfones da Rádio Pública, Antena 2, corresponde a essa definição – são crónicas que encaram de frente a fúria do mundo contemporâneo, interpretando os seus desafios, perigos e simulacros com um olhar crítico acutilante. Mas a singularidade destas páginas de intervenção provém, sobretudo, do facto de a autora ser capaz de juntar no mesmo palco da reflexão o pensamento crítico sobre a realidade e o discurso subjectivo da memória íntima, com um olhar profundamente sentido. No interior deste livro, há páginas inesquecíveis sobre a vida humana.

No intervalo para almoço na cantina do Planetário do Porto, reparei pela primeira vez na figura presente num painel de azulejos, cuja autoria não consegui identificar. Uma mulher e um fogo. Registei a imagem com o telemóvel, a câmera que tinha à mão, e mais tarde editei-a, transformando-a.

Pelo caminho encontrei-me também com o verso de Valter Hugo Mãe presente em publicação da mortalidade:

não tenho filhos
tenho mortos

A par destas experiências radiofónicas e literárias, coincidiu estar a ler o livro Manual de Sobrevivência de um Escritor ou o Pouco que Sei sobre Aquilo que Faço de João Tordo. Este manual apareceu num momento em que estava especialmente interessada em conhecer outros métodos de trabalho. O processo de escrita não é tão diferente do que pode ser um processo em dança. Esta leitura trouxe-me o sossego necessário para enfrentar o caos inerente aos inícios.

Mais tarde, aliando a vontade de continuar a melhorar o catalão e de pensar sobre o fazer poesia, li POÈTICA Construcció d’una lírica de Joan Margarit.

Estes foram os primeiros faróis que chegaram acompanhados de uma vontade chamada dança. De querer voltar ao corpo como veículo principal, sem as limitações inerentes à manipulação de elementos externos a ele. Não que as limitações não sejam positivas, pelo contrário.

Chamo-lhes «faróis» porque escrever se assemelha muito a lançarmo-nos no mar alto numa barcaça, na esperança de chegarmos, são e salvos, a uma margem segura. Mas, como não podemos ver essa margem, o máximo que vislumbramos são algumas luzes que, pelo caminho, na escuridão da noite, nos vão mostrando o sentido da rota.
João Tordo

O segundo início foi o dia em que decidi começar este arquivo online de documentação do processo. Nesse dia 22 de Outubro de 2020, durante uma caminhada, o Dídac Gilabert sugeriu que podia partilhar de forma digital a minha pesquisa para Ateia. Depois de um momento de hesitação, percebi que seria um desafio interessante. Foi assim que surgiu Ateia in Progress, com o objectivo de tornar o processo visível à medida que vou organizando as ideias e desenvolvendo ferramentas para melhor comunicar digitalmente. O processo irá sendo publicado aqui à medida que for acontecendo.

Estes dois momentos são, por agora, os únicos definidos no tempo. É um projecto sem datas marcadas. Demos tempo a Ateia para que possa vir a ser o que já é e que eu/nós ainda vou/vamos descobrir. Imaginação precisa de liberdade e tempo.